Poesia Kalunga

29/02/2016 · Por Ana Ferrareze

Como muitos do interior de São Paulo, venho de uma família ligada à terra. Meu avô materno, Arnaldo Ferrareze, era filho de imigrantes italianos e desde cedo aprendeu que vencer na vida só era possível a custo de muito suor e enxada. Criou os seis filhos assim. Cresci passando fins de semana e férias nas fazendas e sítios de parentes, em contato com barro, grama molhada, galo cantando de manhã e sapo coaxando ao entardecer. Meus pais, meus tios, meus primos entendem a poesia da roça. Sabem plantar e colher, falam sobre árvores, flores e pássaros. Colhem os frutos do pé e preparam compotas. Limpam o peixe que eles mesmos pescam. Matam galinha, depenam e conhecem o jeito certinho de deixá-la gostosa. Botam toucinho de verdade no feijão sem medo de serem felizes. Ainda estou tentando descobrir em que momento essa deixou de ser minha poesia. E a de tantos outros que caminharam comigo nos anos de cidade grande, onde o que fascina é dinheiro, arranha-céus, o carro do ano, o restaurante estrelado, os eletrodomésticos de primeira linha, as roupas de grife. Fui morar em São Paulo pouco antes de completar 18 anos. Por lá fiquei até os 25 – sem contar o ano que passei em outra metrópole, ainda mais distante, Paris. Pois agora, há quase dois meses, minha morada é São Jorge, uma vila de 600 habitantes, com chão de terra batida e emoldurada pelas cachoeiras e serras da Chapada dos Veadeiros. Foi aqui que me dei conta de tudo isso. Voltei sem querer às minhas origens e elas se voltam todos os dias a mim, questionando onde guardei essa antiga poesia e apontando, de mansinho, os caminhos para recuperá-la.

Conto tudo isso para abrir a experiência que vivi na última semana, na comunidade da Barra, parte do Sítio Histórico Kalunga. Passei quatro dias na casa do Pica-Pau e da Miranda, pais de Junior e filho e nora de Seu Otávio, kalunga que ajudou a construir o Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, para o qual agora trabalho como jornalista. Fui com Juliano, o idealizador desse sonho, e Tila, uma das bases que o fez realidade e o mantém cada dia mais forte. As companhias tornaram a incursão ainda mais especial. Eles conhecem a cultura kalunga há muitos anos. Este é também o mundo deles. Quando começaram a desvendá-lo, a comunidade havia há pouco tomado contato com o exterior. O Kalunga é o maior território remanescente quilombola do Brasil. E descobriu que existia uma outra realidade por trás das serras que o protegeu da escravidão apenas na década de 1980. Na época, seu povo nem ao menos sabia que esse longo e vergonhoso período do Brasil havia acabado e que sua liberdade estava assegurada, ao menos no papel.

Para seu povo, Kalunga significa “lugar sagrado que não pode pertencer a uma só pessoa ou família” e “lugar onde nunca seca, arável, sendo bom para as horas de dificuldade”. Eles chegaram onde agora é tombado como Sítio Histórico e Patrimônio Cultural – pela lei estadual 11.409, de 21 de janeiro de 1991 – em meados do século 18, quando o estado passava por seu período de colonização, marcado pelo garimpo de ouro e cristal de rocha. Os africanos criaram seu refúgio naquele espaço, protegido por serras, rios e vãos, lutando contra aqueles que os queriam como escravos, mãos-de-obra fortes e baratas, para a construção de um patrimônio que formou o Brasil e a realidade que conhecemos hoje. O quilombo remanescente Kalunga ocupa 237 mil hectares e abriga mais de 4 mil pessoas. É formado por quatro comunidades – Contenda, Vão de Almas, Vão do Moleque e Ribeirão de Bois –, localizadas nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás e integradas por pequenos povoados, como o da Barra, onde estivemos, Engenho, Riachão e Ema.

A estrada até hoje é difícil. De terra, esburacada, íngreme, escorregadia nos dias de chuva e impossível de atravessar com carros comuns. Caminhonetes 4x4 dão conta do recado ainda com dificuldade. Para os kalungas, a saída foi a compra de motos, o meio de transporte mais visto por lá, além dos cavalos. Uma facilidade adquirida após o governo Lula, quando as comunidades menos assistidas ganharam o poder de compra que deixou a vida menos complicada. No caminho, a paisagem é deslumbrante. Em poucos lugares onde já fui senti o significado do verbo preservar. O cerrado ali é protegido, vasto, verde, selvagem. Os roçados o respeitam. Existem para alimentar, não alastram. Comungam com a natureza, ao menos por enquanto. Hora ou outra, uma casa aparece. Elas são feitas de adobe, cobertas com telhado de palha de pindoba, semelhante à folha do coqueiro, mas mais larga e resistente. Muitas, no entanto, já foram erguidas com tijolos e telhas. Pelas portas, famílias inteiras vêm observar quem é o estrangeiro que chega fazendo barulho. Na comunidade da Barra, a energia elétrica chegou. Pelas janelas, as televisões sempre acesas, na novela da tarde, mostram que uma hora ou outra a influência se faz presente e é preciso tomar cuidado para que não destrua o que ainda é tão genuíno.

A casa de Pica Pau e Miranda já é de tijolo e telha. Mas no quintal, uma espécie de quiosque não perde a essência. É coberto com palha, que protege o fogão à lenha e as redes e cadeiras que montam a sala de estar kalunga. É ali onde todos se reúnem para a prosa. Onde a visita chega e senta para tomar o café. O chão é de barro batido. Dentro e fora da casa. Algo impensável na cidade. Deixa os dedos dos pés brancos de poeira, mas está sempre limpo, varrido. O banheiro – quando existe - fica na área externa, construído com a mesma base na maioria das casas do povoado. Obras do governo nos últimos 10 anos. O sanitário é separado do chuveiro por uma meia parede, uma pia ao canto e é isso. Inicia-se o saneamento básico.

ConVIVER

“Aqui só não tem dinheiro, o resto é à vontade”, declara Seu Hélio, abrindo o freezer que mantém em seu quarto, lotado de peixes até a boca, pescados por ele e a mulher, Dona Santina, que naquela hora da noite voltava de mais uma pescaria no Paranã, rio que corta o Sítio Histórico, delimitando a área às suas margens direta e esquerda. Ela logo escolheu alguns pescados, limpou em dez minutos e fritou para as visitas. De comer com os dedos, com arroz e guariroba. A hospitalidade é reza forte nos kalungas. Onde se chega, puxa-se uma cadeira, deita-se na rede, toma-se um café, come-se um pedaço de bolo, manda-se pra dentro uma dose de cachaça. Chega um, mais tarde vem o outro, o vizinho fica sabendo e também passa pra cumprimentar. Quando se vê, a casa está cheia. O mais bonito é a falta de cerimônia. A casa está sempre pronta pra qualquer um que queira chegar.

E a prosa come solta. Tem um ritmo compassado, muito riso, nenhum atropelo. Cada um dá as notícias da família, conta se conseguiu alguma coisa na caça e na pescaria, diz como a mandioca e o milho deram bem... Vão render muita farinha e pamonha naquela leva. Os kalungas têm uma tradição oral muito forte. No meu entendimento, ela cria uma rede familiar na comunidade. Os mais velhos passam o conhecimento aos mais novos, o que os torna grandes mestres e valoriza o respeito à família.

Tôca, parceira de anos da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, nos convidou para uma sopa kalunga (peixe ensopado acompanhado de pirão de farinha de mandioca, uma delícia) em sua casa, onde mora com o marido, Otávio, e os três filhos, Amanda (17), Gabriel (12) e Diego (9). Os meninos a ajudam em todas as tarefas da casa. Ela trabalha como merendeira da escola e quando chega, a comida muitas vezes está pronta, a louça lavada, o chão varrido. “Eles têm que saber pra aprenderem a se virar”, diz ela. “Daqui uns anos, meu filho, você vai é virar chef da cozinha e eu vou ficar aqui deitada o dia inteiro”, avisa à Diego. Criança não rima com preguiça no Kalunga. Os pequenos têm uma vida muito feliz, ao ar livre, com brincadeiras. Mas pegam no pesado desde cedo. Aprendem a cuidar da casa, da roça e dos bichos para ajudarem os pais, que já trabalham muito. Filho, na roça, é também mão-de-obra. Por isso, eles amadurecem muito cedo, o que também acelera todos os outros processos da vida: sair de casa, casar, ter filhos, trabalhar e começar seu próprio meio de sustento.

Tôca voltou a estudar e está na sala da filha, Amanda, no último ano do Ensino Médio. Gosta de matemática, física e química. Conta todas as matérias que tem. Diz que está muito difícil, mas que os professores são bons. As aulas começam tarde, às 20h, e ela só vai voltar pra casa lá pela meia noite. “Eu ainda tenho uma caminhonete véia pra ir, moça. Mas quem num tem vai a pé mesmo, no escuro. Esses dias toparam com uma onça no caminho”, fala. E os ônibus escolares? Só Deus sabe.

E Deus é muito louvado por esse povo de fé. As festas populares são marcadas por forte religiosidade e homenageiam santos da Igreja Católica com folias, rezas, promessas e hinos. Estes também são entoados nos cultos evangélicos, realizados às quartas e sábados, que atraem cada vez mais pessoas. Chiquinho, um dos maiores guias de folia da região, entrou para a Igreja Evangélica e parou com a folia. Agora, cria os hinos para os cultos. São eles que chamam mais gente, além das doações de roupas e brinquedos feitas pelos pastores. “Vou lá só pra ouvir”, me conta Evangelina. “É bonito demais ver eles cantando. Só não gosto quando falam mal das outras religiões, tentam botar muita coisa na nossa cabeça”.

“Hoje o povo bebe muito e num sabe mais girar”, reclama Chiquinho. “Quando a gente se compromete com a folia, promete não beber nem namorar por aquela época... Vê se alguém dá conta disso hoje em dia?”. Quem não cumpre, cai, como eles dizem. Mas se tem fé, tudo dá certo. Ele conta que na folia de São Benedito era um dos únicos que conseguia fazer chover – de acordo com a tradição, eles cantam e começa a cair água do céu. Antes de entrar na Igreja, bebia muito e era encrenqueiro. Essa fase passou. “Hoje passo na rua e me respeitam, porque sabem que não sou mais daquele jeito”, diz.

A Igreja Evangélica trouxe benefícios, mesmo que seja uma ameaça às tradições culturais. Diminuiu problemas alcóolicos, acalmou os ânimos nas festas, que são uma mistura entre o sagrado e o profano. Os cultos acabam se tornando uma ocasião de encontro da comunidade durante a semana. Enchem de gente.

Quando vem o medo por todas essas influências, penso nas tantas pelas quais o povo Kalunga – e todos os outros deste mundo – já passou e carrega até hoje. Penso em todas as tentativas e vitórias de um mundo globalizado, que chega com todas as garras e suas tentações, por meio da televisão, do emprego que paga mais, da facilidade em comprar em vez de fazer, do açúcar refinado, do sal em excesso e do refrigerante que chegou em todas as mesas. Há muito a se falar dos kalungas. A sentir, a viver, conviver, ajudar, aprender. Ainda estou na primeira página. O que já posso concluir, fora tantas questões a serem elaboradas, é que há muita sabedoria escondida no nosso Brasil e em nós mesmos. O povo brasileiro de quem tanto falamos está aqui, aí, em todo lugar, nos interiores e grandes centros. Precisamos esquecer um pouco nossa cultura colonizadora europeia e voltar os olhos para o que temos. Pensar no que realmente é desenvolvimento, cultura, educação, progresso. O que é mesmo importante. Espero que, como eu, todos tenham a chance de um dia refletir sobre isso em volta de uma fogueira, com um céu cheio de estrelas acima da cabeça, um rio passando logo ao lado, o cheiro de mato misturado com o da galinha caipira cozinhando no forno a lenha. O simples desanuvia a mente e cria poesia.